quinta-feira, 2 de agosto de 2018

RISOS DEBAIXO DO MESMO TELHADO


RISOS DEBAIXO DO MESMO TELHADO

Duas casinhas, pintadas de um amarelo torrado e telhas vermelhas, com pátio em cantaria, o granito lavrado pelo ofício ou arte de talhar blocos de rocha bruta.
O mesmo telhado a cobrir as duas habitações, as cozinhas sem forro, deixavam a nu o travejamento da arte de marcenaria que sustentava a asna, a viga principal, os barrotes, as ripas enegrecidas pelo fumo da lareira, e que serviam de apoio às varas do fumeiro, e de suporte aos morcegos da noite.
As paredes tinham ouvidos, riam, cantavam, choravam e numa murmuração melodiosa, tilintando como se o crepitar da fogueira fizesse eco na madeira negra como um tição, sussurravam histórias que ainda hoje hão-de saber de cor, esperando risos de criança e olhares curiosos de uma meninice feliz.
À hora de lavar a louça, ouvia-se o batuque da caneca de esmalte contra a parede, a dar sinal de comunicação, e a água a correr fria e fresca, na bacia que logo se enchia, abrindo a porta e sendo despejada para a rua.
Não havia esgotos, apenas água canalizada, improvisada da fonte próxima. A casa não tinha saneamento básico.
Não havia televisão, os serões passavam-se a conversar, a contar e a ouvir histórias, a assar castanhas na lareira, e a rir debaixo do mesmo telhado, as conversas divididas pela parede das cozinhas, ouvia-se tudo, quase não havia privacidade.
De um lado duas meninas, às vezes três e quatro crianças, quando os primos se juntavam nas férias escolares em casa da bisavó. Do outro lado, dez crianças todos irmãos, com pouca diferença entre eles, de risos variados, a inocência feliz de quem com pouco se criou e a quem a vida ensinou que  basta uma família unida e um naco de pão por sustento para que a vida siga o seu rumo necessário à ordem das coisas.
O telhado partilhado através do tempo, guardou da memória a matemática intacta dos afectos, as contas de somar, subtrair, dividir, multiplicar, essa infância mágica, hoje traduzida por palavras a perpetuar risos sob as mesmas telhas, segredos escondidos, preces atendidas, e por certos desilusões, essa vida temperada de silvestres sonhos, ou a graça de viver a bucólica existência para lá dos montes.
Há ainda o odor dos potes ao lume, a sertã das filhoses empoeiradas de canela, a sombra da noite tão longa quanto a demora para ver acontecer o milagre do futuro.
Nunca os telhados de vidro foram tão transparentes ou a primeira pedra acordou os deuses adormecidos de um poético esquecimento.
...
musa

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