sábado, 25 de agosto de 2018

O CHAMAMENTO AZUL

O CHAMAMENTO AZUL 
“L’APPEL DU BLEU”

Ana, Jean-yves Simon

Estava no pátio das traseiras da casa, não sei se procurando o milho-rei, os bagos da maçaroca saltavam na lona e para o chão de cimento, alguns caíam na terra do quintal, e talvez o ciclo da vida se comprometesse a fazer renascer o pão de todos os dias.
Na mesa havia sardinhas fritas e broa de milho. O fim da manhã incendiada e o trabalho do campo convidam a aconchegar o estômago com esse repasto bem regado pelo vinho maduro de Trás-os-Montes, trazido à beira-mar para fazer cair melhor o peixinho.
Os franceses chegaram, de mochila às costas e livros nas mãos. Três irmãos, parisienses, moços bonitos, delicados, educados, artistas.
O mais velho, Jean-yves o pintor, pousou a mochila e abriu um livro, começando a desenhar, olhava para mim, olhava para a folha branca do caderno entre as páginas do livro, e com o carvão rabiscava traços a negro, surpreendendo-me na sua agilidade e rapidez com que imortalizou a cena de debulhar a espiga de milho.
Os nossos olhos cruzaram infinitas paisagens, do mar à montanha, contei-lhe dos poetas portugueses e aprendi na sua paleta de traços negros, as cores escondidas de mil tonalidades de aguarelas que ele tinha para me oferecer, no cântico doce da poesia francesa, aprendi com o pintor de imagens salgadas a descobrir um país de sardinhas, eucaliptos e o fogo devorando montes, serras, bucólicas imagens de um tempo que fica memória em esboços de pintura e poemas.
Fizemos promessas sobre nuances e palavras, em duas línguas oficializamos a paixão pela escrita e pelo desenho e realizamos sonhos feitos em papel.
Os livros existem para o provar.
No dia 25 de Agosto de 1988, chegamos a Lisboa, e o Chiado ardido esperava por nós como fogo que arde sem se ver. A cidade fragilizada recebeu-nos com lágrimas no olhar dos lisboetas e um odor a queimado perfumava dessa herança pesada, a cidade hospitaleira, ferida de morte no seu coração.
Perdura o cheiro a cinzas molhadas, panos ardidos, papel queimado, suspiros e desilusão de mão na boca e sinal da cruz diante dos escombros.
O pintor francês retratou esse bairro lisboeta com o peso e a genuinidade do carvão, preparando cada momento delicado com a profundidade da alma sensibilizada, traço a traço visionário de toda a tragédia, no deslumbramento desse Chiado pitoresco e bairrista.
No papel tombaram as sombras e renasceram das cinzas em pranto e súplica, formas e feitios imaginados, com a magia da nobre arte de talhar luminosidades em riscos de contraluz e observar cada detalhe ao mais ínfimo pormenor.
Nunca Lisboa foi assim desnudada de tão difícil nudez e de toda a luz roubada pelas chamas devoradoras, deixando um véu de fumo e negro por tantas lembranças.
Trinta anos depois o reencontro dessas memórias, tem o gosto de uma paixão ternamente guardada no baú das recordações.
O chamamento do azul em flamas incandescentes ruborizou o tempo de inspiração poética.
As ruas do Chiado eram fantasmas de muros erguidos ao alto sobre o vazio dos seus interiores esventrados pelo fogo, sem qualquer misericórdia, tudo ardido, reduzido a cinzas, e dois seres de mãos dadas pelas ruas da cidade, tentando unir uma paixão de olhares impressionados pela vida.
Resta a poesia e a pintura, a palavra e o traço como dever de amor, e a secreta ternura entrelinhas de momentos vividos em doce cumplicidade.

musa
http://www.simon-artiste-peintre.com/fr/fiche_peintre_ecrivain_simon.php?fi=22

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

CEIA DE VERSOS

CEIA DE VERSOS


São íntimas as noites
Que alimentam nascente de águas enfatizadas
De uma fome de ceia de versos
Saciadas madrugadas em rios por correr
Leito adormecido de caudais
A brutal trepidação de sinónimos
Ou líquidos substantivos
De verbos metais
A doer

Neste agitar de águas metaforizadas

Tempos imaginativos
Sulfúrico odor do pranto
Química sentimental do olhar
As veias pulsantes e rasgadas
Na carnal dor do desencanto
De versos a pulsar
Em lírico canto

E todos os silêncios murmurados
Nas pedras construídas de ventania
Em cimentada agonia
Sussurrada cantoria
Em lábios selados

A guardar secretos lamentos
Olhos vendados
Dúbios sentimentos
Débeis pensamentos
Pulsos cortados
E o sangue a escorrer
A vida a querer morrer
E a pele a endoidecer
Corpos mirrados
De prazer
...

Vou misturar as flores mortas
As sensações as lágrimas e as vogais
A obsessiva inspiração
As palavras mais mortais
Em divinal oração
Água dividida em luz e pétalas
As sombras os umbrais e as portas
A abrir todos os ventos
E nessa vibração
No turbilhão dos pensamentos
O fiel silêncio dos deuses
Nas horas absortas

Enrugadas mãos de margens inundadas
Paisagens de olhos prometidos
Templos abençoados
Janelas enfeitiçadas
Em altares de sentidos

A escuridão derramada
De odores bafientos
E caules partidos
Flores decepadas
Verbos emudecidos
Profundezas por descobrir
Sonhos esquecidos
Sem saber o que sentir
...

Cada dia mais ausente
Como se estes versos sem rima certa
Agonizante e contundente
Decepassem palavras pela raiz do sentir
E de razão obscura e  incerta
Trespassassem o divino Sebastião
Como lanças de versos a ferir
A folha manchada pela mão
A ilegível pontuação
Em machadada na inspiração
E o refrão a repetir
Metáforas deslumbradas
Metamorfoses inventadas
Em títulos de livros por existir
Ou andores de poemas em procissão
E nessa ausência dividida
O verso partilhado
Cada dia mais absorto do instinto
Pequenos rasgos na vida
O poema trespassado
A loucura que consinto
Ritmado andor
Em longínquos lapsos de memória
Tão distante e esquecida
Laivos de dor
Brecha ou disfasia
A lembrança ilusória
Cacos de poesia
Ou a noite perdida
Inglória
...

Deixa-me versos
Com silêncios rasurados
E furtivas palavras a espreitar o sentir
Das marés vivas no litoral da inspiração
E praias escondidas nos cânticos do teu ser
Sobre as areias os teus passos
Ousam deslumbrados escrever
Os poemas que o teu sangue endurece
E quando anoitece
Na calmaria das águas escurecidas
Acontece a poesia

Em vagas de palavras sobre o areal
Do teu olhar de verbos de um gerúndio sedento
Como um deserto carnal
A rasgar as dunas pelo vento
Em doida fantasia

Sem saber que barcos sulcam o poema
E o casco da alma atormentada
Sorumbática e serena
Entristece entre a loucura e a melancolia
Dividida e multiplicada
Em valados de veias por abrir
Ou a súbita palpitação
De navegado sentir
O rumo desorientado
Do apaixonado coração
A bater por existir
...

Um destes dias
As negras aves com que adormeces
Os meus olhos nas tardes entristecidas
Deitadas nas horas sombrias
Sem saber se mereces
Mais do que a luz ou as coisas já esquecidas
Vou mostrar-te
onde mergulham as sombras ao entardecer
E rasgam de fogo lentamente
O azul manchado das tuas mãos dormentes
A arrancar crepúsculos incendiados
Nas negras asas das aves a arder
Em bandos tardios de longínquos poentes
Olhos húmidos e afogueados
Trémulos a desfalecer
De uma tristeza profunda e nua
E a certeza de que um dia destes vais saber
Onde se esconde a lua
Quando ao anoitecer
Um rio de escuridão
Ensombra a noite do tamanho do teu olhar
Em intimidada sedução
Abre as asas e parece abraçar
De estrelas
Todo o paredão
...

Vêm do litoral a norte
Ventos de versos a explodir
Maduros frutos a eclodir
Bravas sementes de palavras
No arado chão da fria aragem
O poema segue em viagem
Todo ele a fazer-te sentir
Nas pedras duras macias mágoas
Sonetos da íntima morte
E o poema a desistir
Da quase poesia

Um fulgor da distância
A quebrar tempo e melancolia
E um vendaval a varrer
As dunas e a maresia
Um travo de medo
Talvez a infância
A querer dizer
Que ainda se faz cedo
Para morrer
...
musa

terça-feira, 14 de agosto de 2018

PRANTO SILENCIADO

PRANTO SILENCIADO

Aprendi a orar ao silêncio
Sobre todas as mágoas adormecidas
Construí um templo de memórias esquecidas
Da alma fiz um altar
Das veias círios a arder
E o sangue em lágrimas por queimar
O amor que ficou por fazer

Aprendi a amar num silêncio de pranto
A teia que o tempo ajuda a tecer
Que o feitiço a oração ou quebranto
De silente sentir
Ensina a esquecer

Aprendi dos ensinamentos
A profundidade
Dos sentimentos
A densidade
Dos pensamentos
A intimidade
Em verbos nunca conjugados
Em modos nunca soletrados
Em tempos nunca inventados
De silenciados devaneios
Ou versos por escrever
Dos mais íntimos anseios
Ou mais secretos enleios
Do que ainda pode acontecer

Aprendi a prece
O silêncio murmurado
O choro mudo e sufocado
A dor que enlouquece
Bem fundo o interior
Da lágrima fecunda
De resignado amor
A tristeza profunda
Sem voz ou clamor

Aprendi com paciência
Sem querer ou esperar
Deduzi sem qualquer ciência
Que o saber e o calar
A ser fruto da experiência
Tem mais lágrimas do que chorar
...
musa

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

PAPOILAS

PAPOILAS

Morre devagarinho seda brisa ruborizada
Campestre luminosidade de um entardecer no prado
Silvestre tonalidade  esmaecida matizada
Não mais selvagem e singela do que a flor do cardo

Vermelha a esconder da luz o ópio alucinante
Com que seduz as aves a esvoaçar o campo
De pétalas em fogo manso na seara ondulante
Como se o sol derramasse em chamas o seu manto

Encarnado e negro de fímbrias delicadas
Os campos de papoilas do Monet parecem cheios de borboletas
Esvoaçam como bailarinas aladas

Culpa da aragem em melancólica ventania
A contar sonhos e outras memórias secretas
Ou somente o vento a escrever poesia
...
musa

ABÓBORA

ABÓBORA

A abóbora não sei se ainda menina
Em impetuosa liberdade de natureza
Saltou o portão e a crescer pequenina
Logo se fará grande e de boa riqueza

Na rede espalhou as folhas viçosas
E o velho portão não mais se abriu
As suas raízes por entre as rosas
Guardam segredos que o sol sorriu

Da casa amarela sua graça é o jardim
Canteiros à janela que ainda dão flor
E a abóbora cresce diante do patim

Também eu cresci selvagem e madura
E da casa amarela guardo muito amor
Quase Cinderela em conto de loucura
...
musa

ERVA CIDREIRA

ERVA-CIDREIRA

Num recanto sombrio do jardim
Uma nesga de sol empoeirado
Faz o encanto obscuro do patim
Rebenta a erva cidreira ali ao lado

Junto à frescura da cantaria da serra
Frente à janela virada a poente
Um canteiro de húmida e boa terra
Acolhe como um berço a florida semente

Perfumada verdura de macio sabor
Calmante e digestivo o chá tão generoso
Guarda-a o sapo jardineiro por amor

Mansamente o estio no fim da estação
De um sol dourado quente e luminoso
Seca a ramagem em divina sagração
musa

NINHOS DE FOGO

NINHOS DE FOGO

Restam alguns eucaliptos chamuscados
A serra toda ardeu
Em chamas os troncos queimados
Erguem-se ao alto a  testemunhar ao azul do céu
Que todo o verde desapareceu
E ao negro olhar a montanha ardida
Tristemente perdida
A serra algarvia de luxuoso manto
Perdeu fauna e flora e todo o encanto
No fogo criminoso da vida
Perderam-se os ninhos e os esconderijos dos animais
Os céus rasgados por um alarido choroso
Nus os caminhos e os muros calcinados e o grito impiedoso
Das línguas de fogo a cortar como punhais
O ritual monstruoso
Da serra a arder
E o bando de aves desorientadas
Que fugiram para não morrer
Esvoaçam as cinzas acetinadas
desliza no chão o negro cetim
E um voo sem fim
Desespera viver
...
musa