Eu com o Carlitos, o neto da Ti Infância, na Ponta da Pedra do
rio Tuela
A Ti INFÂNCIA (a melhor amiga da minha bisavó Maria da
Encarnação Carrazedo)
Rebusco os bolsos do avental das memórias, outra vez aquela
sensação de ter deixado uma luz acesa, de ter deixado uma porta aberta, ter
deixado uma palavra por dizer, mas não encontro as doces pequenas maças
amarelinhas dos olhos afáveis da Ti Infância, que conheci já uma velhinha, tez
enrugada, cabelo todo branco, mãos rugosas e gretadas, talvez já perto dos setenta
anos, tão franzina e delicada como desconcertada e desajeitada, periclitante e
manca na sua pequenez de pouco mais do metro e meio de ternura e acredito que
pouco mais do que cinquenta quilos de tamanho e agilidade mas de uma grandeza
enorme na sua bondade e alegria benzida todas as manhãs pelo néctar das vinhas
tão doce como a sidra das maças que jamais provarei de outra infância vivida.
Dançava nos seus braços as lágrimas de todos os dias
carregando as tristezas alegres de dores mal paridas e forças ocultas de sonhos
vividos na forca de Baco vociferando a intempérie de uma pobreza feliz e
abastada com todas as riquezas da terra.
"O carrapito da D. Aurora era bonito mas foi-se
embora..."
O seu abraço chegava sempre carregado de melodias e letras atabalhoadas
e a dança escondida debaixo dos seus trajes negros encardidos do pó da terra ou
enredado nas franjas do xaile, perfumado de odores da lareira e cheiros
inebriantes da adega, cumpria o ritual da boa disposição e tal e qual a velha
da história de Hänsel und Gretel (João e Maria) a Ti Infância alimenta as
minhas recordações tirando dos bolsos do avental sonhos de fantasias com maças
doces como o mel em rebuscado passado intacto na floresta de casas e uma rua
onde todos se conheciam e abriam as portas em resplandecente harmonia acolhendo
a minha rebeldia e inocência na penumbra fraterna de cuidado maternal como a
mais rara magia ou feitiço de afectos guardados nos bolsos da velha dos mimos.
A rua onde nasci desde o entroncamento até ao cemitério, na transmontana
aldeia para lá do Marão, onde as raízes florescem acima do chão a força
telúrica do mistério dos vales profundos como a pré-história em melancólico
silêncio dos mágicos contos da lareira projectando sombras na penumbra dos
recantos do lar em dádiva oração, e todos se conheciam, e eram uma família com
um final feliz.
A Ti Infância manca e desdentada com um único dente à frente,
a segurar os sorrisos que emprestava aos meus sonhos de meninice e ingenuidade
lançando aos ventos vénias de orgulho e temperamental sossego sem despojo de
inquietações e tudo se resolvia na honorabilidade e crença numa fé capaz de
mover montanhas pelo credo volátil fraco ignóbil do medo sem a repulsa da
cegueira pela descrença no futuro.
Acredito bem que não havia futuro bem como não havia pecado,
mas um presente bem mais ingrato do que o passado.
Chamava se Infância a velha senhora dos meus sorrisos e quero
acreditar também que ela não vinha alimentar os meus olhos com a doçura das
maças e a ternura de uma doce avó oferecendo colo às saudades da infância feliz
que as vezes sorri rebuscada na lembrança do passado, mas trazia-me palavras
que escondia nos meus sentidos como sementes deitadas à terra esperando a hora
de germinar, cuidando da minha alegria de criança para que este dia chegado eu
fosse capaz de sentir saudades suas.
Tantas vezes tenho vontade desse regaço meigo, desse colo e
aconchego e desse olhar tão puro e verdadeiro e leal de humanidade e vida.
São elas que envolvem o meu sentir com cheiros e cores e
trazem nas lágrimas furtivas de saudade o manso conforto das palavras em trégua
com a difícil resistência a uma deportação de cansaço de viver.
Eu sei que além de um tempo de infinitude espiritual rege a
claridade da travessia segura num raio luminoso esperando sereno no umbral da
eternidade onde todas as mulheres da minha vida estendem os braços no seu
regaço com um abraço do tamanho dos sentidos da poesia.
...
musa
Escrever a memória é somente dar a receita da eternidade de um
povo
Sentir e partilhar das minhas memórias, é a minha humilde
gratidão a uma parte desse povo que me fez mulher tal como sou sentindo nas
palavras o rasgo fundo dos sentidos como em madrugadas rasgadas de chão fértil
na lavoura dos sonhos e serei poetisa talvez Odete façam os versos a lavoura
doce da essência feliz das gentes da minha terra onde tem raiz Torre de D.
Chama e a pureza da minha meninice vingou com tanta fartura de poesia...
Grata a todos por este sentir... Carinho poético sempre
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