quarta-feira, 30 de maio de 2018

DE TRÁS OS MONTES A SEIVA E A POESIA EM RETALHOS

DE TRÁS OS MONTES A SEIVA E A POESIA EM RETALHOS
Espelhada num pequeno rio, distante do povoado, defronte ao Monte de S. Brás, protege-a o orago de Santa Maria que teima nas raízes os mesmos sentidos que, umbilicalmente, ligam a terra, as águas doces e o céu, a agreste paisagem das giestas em flor, das estevas a sangrar a seiva, embriagando o ar de adocicado aroma, também a urze bordando a serra, em ponto cheio, como se violetas do ribeiro tivessem galgado o monte, e salpicado de roxo o chão, e a bucólica tela de um deus pintor, arrebatadora de cores no esmaecido horizonte, as pedras erguidas imponentemente, como um altar de sacrifício de deuses, em sintonia com a natureza, fosse a alma, desses destinos entregues a um fiel guardador de tesouros escondidos.
A deslumbrar pequenos casarios perdidos, pombais como guarda-jóias, escondendo segredos das serranias. Caminhos de cabras, pedras sobre pedras, lajes xistosas de amarelecidas giestas, rebanhos à guarda do pastor, litanias antigas adormecendo a escuridão, e o ruído da ventania, a varrer de murmúrios, ermos outeiros de mouras e lendas, transportadas por saltimbancos para terreiros, onde a noite conta histórias de encantar.
No sangue ainda a palpitar, ocres de um entardecer, amaciado no cabo da enxada, abrindo sulcos de pó e pranto, olgas em retalhos, lameiros de um verde puro, o feno espalhado ao sol, como travessia de odores de infância, cortinhas alinhavadas de madrugadas de sombras cintilantes de frescura e o burro a arrastar pelos carreiros da vida, cansaços de braços estendidos ao sol, como se a loucura fosse um filho carregado no ventre.
O silêncio das oliveiras a esvoaçar tormentosos medos, resquícios de gélidas lamas em painéis de alminhas, retratando infernos da última morada, e quantos dias, o senceno e a neve, a esconder a cor da terra.
O corpo de granito frio, o engodo em chamas, o fausto empório dos madrigais a estremecer porcelas, em dilúvio de lágrimas, quando a solidão despoja de esperança, as árvores do pomar, e tombam sobre os torrões encharcados, as flores do mal empobrecendo o sonho.
A memória a pedra revirada, a surpresa e a revelação da espera em lençóis de searas, por entre os castanheiros em flor, formigas, lagartixas, grilos e cigarras, ou pequenas aranhas ludibriando a sombra, em teias de pérolas de orvalho, secretos matizes em bailado poeirento, selando as rugas de séculos crescendo ao abandono.
O compasso de ventos em delírios, calcorreando vinhas grávidas de néctares maduros, castas em urgente recolta, com a promessa de suaves mostos, temperando de embriaguez o tempo.
A minha terra, o meu chão, as minhas raízes transmontanas, solo arável e fértil de sonhos e sentires, Torre de uma dona Chamoa, ou Chama, ou Flâmula, ou Chamorra, dizem-na muito bela de rosto, e defeituosa de pernas, pouco importa à paisagem, e nem mesmo a lenda a desfigurou dos sentidos mais profundos, ou o rio Tuela lhe deu mais lágrimas do que as chuvas diluvianas, a engrossar caudal por debaixo da Ponte da Pedra, fazendo saltar as trutas, por entre os seixos, marcados de secura e líquenes roubados à pré-história, dos arvoredos em seus vales profundos, uma tez campestre que lhe alimenta a alma, os grãos que a salvam da fome, o trigo, o centeio, a cevada, e o ritmo das colheitas em vénia às estações do ano, o vinho e o azeite, se embriagada rompe a manhã de sol infernal, tem na claridade mais fria, a luz da candeia improvisada, junto ao escano no gélido inverno, a noite chega cedo, e longa a lenda se transforma, acrescentada de pontos ao conto.
O dia é uma escritura em demorada azáfama, a cuidar dos animais e das hortas, do pão no forno, dos enchidos na caldeira, dos olhos a contar as luas, das mãos nas mondas, dos potes ao lume, das rezas e dos quebrantos, do silêncio das igrejas a medrar a vida da aldeia.
A cantaria aparelhada, cheira a fruta fresca, e pratos confeccionados de receitas ancestrais, heranças de sabores, transmitidas de avós, às mães e às filhas, o enleio das cozinhas como coração do lar a palpitar de histórias, e as grandes fogueiras a balançar emoções nas paredes enegrecidas pelo fumo das palavras, uns simples rojões do redenho ou uma caldeirada de cordeiro, um queijo terrincho e o salpicão bisaro, o pão centeio escuro ou o folar da época pascal, que importa o tempo quando imortais os sabores, temperam a eternidade do passado.
Do adro, onde a berroa fincou pé, e a magistral fogueira do final do ano, incendeia a escuridão seduzida de tradições, o peito aberto, do postal de boas-vindas, explode a ilusão nas mãos calejadas, e nos sulcos da pele, a efémera poeira crava garras, para não ser levada nas ventanias, ou lavada nas águas dos ribeiros que serpenteiam por todo o povoado.
Do Prado ao Bairro de Cima, do Cruzeiro ao Monte de S. Brás, ou no Largo da Berroa, a aldeia, outrora silvestre, agora desfigurada por modernidades e mutações de algum abandono e desertificação natural, teima memórias em poéticos escritos, e são muitos os que inspirados por ela, surgem de caderno e lápis na mão, a consentir dizer dela, sombrias esperanças que a vida há-de guardar, relíquias santificadas.
Junta-se-lhe o sagrado e o profano, a festa religiosa como trave-mestra da sua identidade, e ao lado do capote serrano, da samarra com gola de raposa, o fato colorido do careto reluz as fímbrias em lã de ovelha, as cores dos crepúsculos, a cheirar a sabão de barra e a madressilva, a roca, o fuso, e as cinco agulhas, a matar as horas pelos montes conduzindo o rebanho.
Torre de D. Chama caudal de memórias incumpridas, saudades em versos ou simplesmente o silêncio que a habita entrelinhas de uma carta de alforria de estrelas, o longo poema com que teimosamente retenho emudecida, o sentir.
Persiste, ao largo do olhar, a casa pintada de amarelo torrado, com o patim em cantaria, e a enorme cerca, terreiro de brincadeiras, um sem fim de aventuras que infância alguma poderá permitir nos dias de hoje, roupas sujas de terra, joelhos esfolados, e um cansaço a pesar os sonhos de felicidade.
A minha casa cheirava a oregãos maduros, manjericão com saudades, alecrim de lágrimas, e a cozedura da massa de pão fresco, com a litania das rezas do passado, um aroma de rosmaninho a perfumar o azeite, e a treva incendiada nas paredes, com crepúsculos anoitecidos à lareira.
Cheirava a madressilva trepando à janela, e a grãos de trigo escondendo maças, cheirava a café de barro, e uvas penduradas na forca dos camarões, atordoando de mel de Baco as gulosas abelhas atraídas aos beirais interiores do tecto travejado, cheirava a segredos nos bolsos do avental, e guiços e praganas, espetados nas meias de lã, em debulhados martírios, na moínha da alma.
O restolho dos cheiros, espargidos na pele, dos cânticos ceifados entre vales e prados, cheios de sossego e paz, abençoando o corpo de canseiras, e suavizando o regaço de ternura, num afago de abraços do tamanho do mundo.
Antecipo despedidas a bailar nas labaredas das memórias, e sangro as feridas de eternos invernos, em cada sonho amassado, como se as mãos fossem pedaços de um puzzle nunca inventado, e o encaixe das peças, a busca do labirinto dos sonhos em fuga, a procura dos cheiros atravessando a vida.
Uma casa que se perdeu, de portas fechadas e janelas abandonadas ao silêncio sepulcral da morte, na rouquidão das despedidas, donde já só restam retalhos, detalhes e entalhes, nas madeiras carcomidas das recordações herdadas do pranto.
A vida roubada de aromas e de colo.
De lágrimas onde havia tanto amor.
De segredos repartidos e de sossegos que nunca mais foram consertados.
O Verão perdeu a latitude dos afectos e a umbilicalidade dos sentidos, temperados no fogão das histórias familiares, e nunca mais o paladar soube, aos delírios dos dias enternecidos, em mãos capazes de erguer altares de cinzas, e transformar manjares em contos de encantar.
É sempre assim quando a avó dos olhos de céu me vem visitar. Há uma luz que faz cintilar as palavras na escuridão das saudades, e as palavras fluem na prosa poética, como uma oração a um deus desconhecido.

Ana Bárbara de Santo António
In "Antologia de Autores Transmontanos, Durienses e da Beira Transmontana - Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro de Lisboa"






2 comentários:

Armando Palavras disse...

Não a pude contactar porque perdi o seu e-mail. O meu é o seguinte: armando.palavras0@gmail.com. Serve este comentário para lhe dizer que tem direito a um volume de oferta da Antologia de autores da Casa de Trás-os-Montes. Contacte a agremiação e diga-lhes que lhe o enviem.
Cordiais saudações
Armando Palavras

Ana Bárbara Santo António disse...

Muito obrigada pela mensagem, comunico por e-mail
Saudações cordias