terça-feira, 5 de agosto de 2014

SECRETO PASSADO

SECRETO PASSADO

O Verão era uma porta aberta a um encontro de raizes onde o passado se entranhava de memórias crivadas de saudade. Sentia-o na pele fibrosa das lágrimas escondidas pelo encanto das esperanças semeadas na eternidade, o caule erguido bandeira testemunho de todos os sentidos em perpétuo desenlace de todos os sentimentos, eternos como os sulcos rugosos das mãos com cheiro a terra e melados de açucar imaculado, odores sepultados no chão de cultivo e cheiros de bafos gentis de animais domesticos, na pacatez da aldeia aprisionada na bola de cristal em amniótico envolvimento de estio e neve, e na bruma rendilhada do pensamento desvanecido em pranto de sentir.
As casas de pedra com varandins de madeira e alpendres de sonho e escadas de sossego e baixos de sustento provinciano, e pavios acesos contra a sombra dançante das labaredas esmaltadas nos muros caiados de negro silêncio nas noites compridas e madrugadas quietas, e gritos abafados de ventres rebentados a desoras, inoportunos em alcance da vida adormecida no seio da escuridão, nas horas rebentadas dos caldeiros sobre as brasas fumegando vapores perfumados de pinheiro e secas giestas desfloradas.
E o cão d’água uivando o dia amanhecido nas goteiras pingando orvalho das estrelas, em enredados caracois cor de tição roubado aos borralhos esquecidos dos ninhos abandonados pelo atraso do tempo nas famintas lides de erguidos abraços em oração da manhã, uiva em cantoria com o sino da igreja da perdida aldeia transmontana em secreto instante da lembrança soando as badaladas escondidas no âmago do ser.
Na alma o sino da manhã, a sua Ressurreição, o tinido do Ângelus, o sino faz ribombar sua voz pela manhã, dá o sinal do despertar, da oração e do trabalho, e ao meio-dia a sua Ascensão, adverte o homem de que a metade do dia é passada, e que a sua vida não é mais que um dia. À tarde, toca três vezes, para recordar as três Pessoas da Trindade, às quais o mundo é devedor da Encarnação, canta o princípio da Paixão do Redentor no Jardim das Oliveiras, toca ao recolhimento e ao repouso.
Diz ao homem: faz as tuas contas com Deus, pois esta noite talvez Ele exigirá a tua alma.
Fazendo ouvir a sua voz três vezes por dia, recorda aos cristãos as lembranças de um glorioso passado, essas belicosas expedições, a honra eterna dos Papas, que salvaram o Ocidente da barbárie muçulmana.
Toca nove vezes, em honra dos nove coros de anjos, para convidar os habitantes da Terra a abençoar com eles o seu comum benfeitor.
Entre cada tinido - ou melhor, entre cada suspiro - deixa um intervalo, para que sua voz desça mais suavemente ao coração e desperte com mais segurança o espírito de oração.
Os sonhos ficam entregues nas mãos dos anjos. O passado é um cão negro que vagueia por caminhos e montes em busca de recordações capazes de moldar palavras em forma de sentidos.
A avó desce das estrelas e senta-se no colo dos sentidos, continuando a moldar flores de açúcar em doces celestiais.
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musa

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