SECRETO PASSADO
O Verão era uma porta aberta a um
encontro de raizes onde o passado se entranhava de memórias crivadas de
saudade. Sentia-o na pele fibrosa das lágrimas escondidas pelo encanto das
esperanças semeadas na eternidade, o caule erguido bandeira testemunho de todos
os sentidos em perpétuo desenlace de todos os sentimentos, eternos como os
sulcos rugosos das mãos com cheiro a terra e melados de açucar imaculado,
odores sepultados no chão de cultivo e cheiros de bafos gentis de animais
domesticos, na pacatez da aldeia aprisionada na bola de cristal em amniótico
envolvimento de estio e neve, e na bruma rendilhada do pensamento desvanecido
em pranto de sentir.
As casas de pedra com varandins
de madeira e alpendres de sonho e escadas de sossego e baixos de sustento
provinciano, e pavios acesos contra a sombra dançante das labaredas esmaltadas
nos muros caiados de negro silêncio nas noites compridas e madrugadas quietas,
e gritos abafados de ventres rebentados a desoras, inoportunos em alcance da
vida adormecida no seio da escuridão, nas horas rebentadas dos caldeiros sobre
as brasas fumegando vapores perfumados de pinheiro e secas giestas desfloradas.
E o cão d’água uivando o dia
amanhecido nas goteiras pingando orvalho das estrelas, em enredados caracois
cor de tição roubado aos borralhos esquecidos dos ninhos abandonados pelo
atraso do tempo nas famintas lides de erguidos abraços em oração da manhã, uiva
em cantoria com o sino da igreja da perdida aldeia transmontana em secreto
instante da lembrança soando as badaladas escondidas no âmago do ser.
Na alma o sino da manhã, a sua
Ressurreição, o tinido do Ângelus, o sino faz ribombar sua voz pela manhã, dá o
sinal do despertar, da oração e do trabalho, e ao meio-dia a sua Ascensão,
adverte o homem de que a metade do dia é passada, e que a sua vida não é mais
que um dia. À tarde, toca três vezes, para recordar as três Pessoas da
Trindade, às quais o mundo é devedor da Encarnação, canta o princípio da Paixão
do Redentor no Jardim das Oliveiras, toca ao recolhimento e ao repouso.
Diz ao homem: faz as tuas contas
com Deus, pois esta noite talvez Ele exigirá a tua alma.
Fazendo ouvir a sua voz três
vezes por dia, recorda aos cristãos as lembranças de um glorioso passado, essas
belicosas expedições, a honra eterna dos Papas, que salvaram o Ocidente da
barbárie muçulmana.
Toca nove vezes, em honra dos
nove coros de anjos, para convidar os habitantes da Terra a abençoar com eles o
seu comum benfeitor.
Entre cada tinido - ou melhor,
entre cada suspiro - deixa um intervalo, para que sua voz desça mais suavemente
ao coração e desperte com mais segurança o espírito de oração.
Os sonhos ficam entregues nas
mãos dos anjos. O passado é um cão negro que vagueia por caminhos e montes em
busca de recordações capazes de moldar palavras em forma de sentidos.
A avó desce das estrelas e
senta-se no colo dos sentidos, continuando a moldar flores de açúcar em doces
celestiais.
...
musa
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