quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A propósito de NÓS DAS RAÍZES

O nó, por vezes, é dificil de desenvencilhar, sobretudo, quando está ligado a tecidos ou cartilagens mais duras e pouco flexíveis, mas poetar com os nós e raízes pode intuir uma impressão tão prosaica como o próprio acto de desatar. No entanto, aquilo que à primeira vista parece difícil acaba por entrar brandamente nos nossos sentidos e cativá-los, pois, o facto dos nós serem das raízes a restrição implícita favorece a própria explicação. O leitor, ao deparar-se com o título, prepara-se para entrar nas profundezas da terra e nos vários termos polissémicos que daí advêm, pois a poesia é sempre esse campo exposto, onde cada palavra é grão e a seara é o próprio livro.
Neste segundo livro de poemas de Ana Bárbara observa-se mais maturidade poética, mais confiança na pena e no sabor das palavras. Os poemas são frutos maduros, ligados à sua origem, às recordações de infância, à problemática do eu em que o próprio sujeito ora se interroga, ora se procura e se projecta até nos próprios animais: "sou a loba que ouviste ao luar/(...)Sou a loba que desce ao vale/ Pelo caminho da clareira enevoada/Com fome de palavras". A poetisa é a tal loba que anda à procura de alimento para os filhos e está sujeita à sentinela dos homens; neste jogo de palavras, o poema vai crescendo com história e com marcas do lugar, assumindo-se como a mapeação do próprio espaço. Há outros poemas em que a reconfiguração espacial é mais definida - "Solitária coruja pia tristemente" - pois aponta para locais ermos e solitários que o poema "Âmago da Terra" acaba por desvendar - "Sou filha da terra/ Uma dama Torriense/ A torre era de D. Chama/ O título em nada me pertence.
Lentamente, o leitor vai descobrindo a região berço " Trás-os-Montes" que foi o palco deste bailado de palavras, nascidas em momentos de intimidade profunda e geradas na teia do tempo e da vida, sempre numa ânsia de revelação... Assim, as raízes, embora com nós, vão tornando-se permeáveis à luz e alimentando o ser; é nessa árvore do tempo que estão suspensas as recordações evocadas: "Contaste-me bisavó que parida foste/ e ainda assim descalça e tão pouco vestida/ Teus pés tocaram o chão/(...)Ajudaste-me a criar entre lágrimas e mimos". O elemento temporal assume, a par da água e da própria natureza animal, uma dimensão misteriosa e premunitória: "O tempo urge na rudeza dos sentimentos/ Quem eu sou já antes fora jamais serei(...) Sou de um tempo procurado/Ontem hoje nunca e sempre jamais". O tempo, esse em que permitiu que as raízes fizessem nós, tornou-se o chão das palavras que estavam cravadas nas memórias: "há um tempo cravado na memória/ que tem a ferro os nós das raízes"; foi nesse tempo que o eu alimentou a esperança e construiu a sua cesta de sonhos que já não serve senão para dar ao tu "vou deixar na tua mão/As minhas gestas bem guardadas/ Dar-tas do fundo do coração/ Onde estavam aprisionadas."
Poesia feminina feita com garra, cheia de amor e de luta, salpicada pela rebeldia de Orpheu e pelo desejo de insatisfação... à espera da hora; tal Florbela Espanca que se viu única na flor do tempo!
Estes poemas, tal como os nós, são para ser desatados e nesse " desembrulhamento" encontraremos a fé da poetisa que vai estampar-se na contra-capa do livro, em jeito de oração à " Nossa Senhora Desatadora dos Nós". Livro de procura e de achar das raízes, poemas com nós e para nós.
Sem preocupações formais, embora com ritmo e melodia suficientes nos poemas em que pretende rimar, estes poemas impõem-se, particularmente pela profundidade e variedade das palavras e também pela novidade do percurso poético - sempre um caminho de procura da origem que vai preparando o leitor para a grande Hora (o nascimento) e depois o esforço de superação e sublimação até gravar a palavra para sempre - a mesma pedra que se transforma em ruína "Solidão em pedra inabitada", mas nunca se desfaz. Esta poesia torna-se esse esteio que foi/é sustentáculo do Ser.

Sem comentários: