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sábado, 21 de novembro de 2009
PALAVREÓLOGA
Mito-mythos é uma palavra grega em que os mitos e a mitologia falam grego, ou melhor, nos falam em grego. No subconsciente europeu o mito faz tremer os grandes narradores fundadores, aqueles que atravessaram gerações nas nossas sociedades arcaicas. Ainda que se pense que os mitos são um assunto dos outros, nós somos os oblíquos interpretes desse transmitir radiográfico, um aspecto da nossa mais soberana tradição, o mito greco-romano, o mito judeu cristão, os mitos são as histórias que se contam os homens para melhor se conhecerem. E se os mitos fundadores no ocidente nos vêm sobretudo da Grécia antiga, nós os trabalhamos ainda melhor para elaborar outros, sugerindo o mito, pátria de ontem, segmento de uma identidade nacional de hoje.
O que é o mito? Claude Lévi-Strauss coloca a questão no pensar do índio americano e diz nos que é uma história do tempo em que os homens e os animais não estavam ainda distinguidos nas suas verdadeiras identidades. Talvez porque a palavra visionária de outros valores, se perdesse na mestiçagem de complementos e neologismos entre antagónicas forças de uma ingenuidade tida nos primários conhecimentos do crescimento da razão.
Se a questão fosse apresentada a Eurípedes, o poeta trágico grego das Mulheres de Tróia e da Medeia, ele mostraria numa cena familiar, sentadas junto da fiandeira, escutando as histórias que toda a gente conhece, as belas histórias ouvidas junto aos mais velhos como testemunho de gerações de inventores orais de existências, as crianças de olhar pasmado ouvindo contar de animais que falam como os homens. Para Eurípedes os mitos, elementos orais da tragédia, eram apenas colecções de histórias cuja função era perpetuar crenças sobre concepções primitivas, relatando a histeria dos negados e/ou vencidos, compondo memorávelmente, cenas duma psicologia fortemente louvável, como ao falar das mulheres da cidade de Tróia que não eram consideradas como membros da sociedade.
Dos Sumérios aos Babilónios, uma tradição de interpretações que se queria fosse ciência oral ou saber reflectido nos tempos vindouros. A ilusão do sonho pela mão dos antropólogos até à antropologia cognitiva contemporânea como o terreno de eleição para compreender o que são as representações culturais.
Viajantes missionários, etnólogos, historiadores, todos vão dar asas à imaginação para contar em teorias as suas interpretações e suas similitudes surpreendentes entre histórias contadas aos quatro cantos do mundo, e aquelas que carregavam a marca da mitologia exemplar dos gregos, assumindo esse papel de ilusionistas do sonho prontos a acordar a adormecida crença nos espíritos, os mitos como o pensamento, revelados efeito duma análise confusa da realidade.
Os deuses da mitologia não podiam ser que personificação das forças da natureza, altas figuras imaginadas nascidas duma linguagem primária sobressaída do subconsciente, e a imergência cúmplice desse estado de espírito primitivo e irracional à espera da passagem do mito à razão.
A cumplicidade da religião e da magia nos braços do mito para num esforço medir forças entre o impacto dos símbolos, os ritos tributados, os costumes, os artefactos, e o selvagem e o domesticado, até ao nascimento do verbo.
Nesta tribo de palavras, do mito à palavra, a palavra expressa, a fábula, a razão de vários autores, Jung, Lévi- Strauss, Tylor, Chase, Fiske, Cassirer, Frazer, Campbell, entre outros, e o Mito do Eterno Retorno de Mircea Eliade, a imaginação nas suas andanças secretas entre a alma e o espírito, os mitos podem ser: Teológicos - quando constituem narrativas sobre os deuses; Cosmogónicos - quando respeitam à Criação do Mundo (no princípio era o Verbo, como se lê no Evangelho segundo S. João, em consonância com a descrição contida no livro do Génesis - se nos ativermos apenas à teologia/mitologia cristã); Culturais - quando se centram sobre as actividades dos heróis que, tal como Prometeu, quiseram melhorar as condições de vida dos homens; Escatológicos - quando oferecem visões do fim do mundo e do Além; Soteriológicos - quando dizem respeito aos rituais de iniciação e/ou magia, de que o mito de Orfeu constitui, sem dúvida, um bom exemplo.
O mito, incrustado como está na linguagem humana, é apenas actualizável através do discurso, ou seja, para que se conheça, o mito tem de ser narrado, ou contado. Assim, se na linguística saussurena encontramos uma distinção entre langue e parole, na linguagem mitológica, por sua vez, langue e parole intersectam se : - O significado do mito apenas é acessível quando o mito é analisado na sua globalidade, ou seja, os vários elementos que constituem o mito, se dissociados, obstaculizam a produção de sentido; - A linguagem do mito é simbólica, alegórica e metafórica.
Mas haverá maior mito do que a própria palavra, o verbo, verdadeira caixa de Pandora, qual Fénix renascida das cinzas, a linguagem em todo seu esplendor resgatado, fulgor esmaecido pelas teorias de que à passagem do tempo serão imunes os mitos património da humanidade, deixamos escrito por palavras sinais, materializados ou não, tudo o que se compõe de proezas humanas e animais com a força da verdade e a manifestação do real.
O ser humano capaz de se desdobrar em múltiplas faces, apoiado na razão, difere do mito, pois nele isso já não acontece, mesmo havendo em tudo o que o homem faz, pensa, quer, sente e crê, a sua cultura de ritos. Quando os ritos esquecem os mitos, começa a necessidade de criar o simbólico, onde a escrita abole o rito e deixa o mito entregue ao rito da escrita, gerando assim uma "perda" entre o rito do mito e o rito da escrita, que se reflectiria na própria relação/ referência linguagem/ língua/ narração, contribuindo para que o mito seja a língua do sagrado. A linguagem é o sagrado se manifestando em língua. Por isso, o mito é a linguagem de toda língua.
Na poesia, o que se revela memória do mito é o apelo do lógos para dizê-lo. Por isso, mais no silêncio e no vazio do que nas palavras, sons, gestos e cores, está presente o mito enquanto memória do silêncio da poesia. O rito é o lógos se fazendo palavras, música, dança e pintura do mito.
Uma reflexão da ligação do mito com a literatura a arte está exposta na interpretação de Schuback: "Ao narrar que Ulisses [Kafka] com cera nos ouvidos jamais poderia ouvir que as sereias não teriam cantado e, assim, descobrir que o mito seria ilusão. Kafka mostra que a literatura é itinerário para a verdade do mito. Literatura é a saga de Ulisses de volta para o mito" (1). Não só Ulisses tapa os ouvidos com cera, mas as sereias não cantam: "Mais do que silêncio, elas deixam em cena o seu não-canto e assim a ausência de encantamento que constituem 'armas ainda mais terríveis do que o canto'" (2). O canto quotidiano nos enche de contentamento, mas nos pode obstruir o caminho para o não-encantamento, para o silêncio. E esta pode ser a verdade do mito, o supremo encantamento, a morte, porque depois que o silêncio fala, qualquer palavra é excessiva, cada um achou a sua plenitude. Ulisses ao ouvir o que não pode ser ouvido só se salva porque se amarra ao limite que toda fala implica. O máximo de limite da fala frente ao ilimitado de todo silêncio está na palavra cantada, onde o encantamento advém como real e como possível, como desvelado e velado, como ordinário e extraordinário, onde a ambiguidade se faz o uno de toda diversidade. A palavra cantada sendo sucessão de sons se faz sentido enquanto uno de toda realidade. Por isso, o ritmo é o real se dando, se manifestando em formas no devir contínuo da não-forma. Eis porque na pausa não há ritmo, só na fala cantada do silêncio. (Manuel Antonio de Castro – O Acontecer Poético – a historia literária)
Foi por meio da poesia homérica que o pensamento mítico manifestou-se na literatura, dando ao mito a dimensão grandiosa de uma verdade posta pela palavra. O mito é a história narrada. Ele conta uma história sagrada. Para Mircea Eliade, o mito é tido como uma narrativa verdadeira e uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada em perspectivas múltiplas e complementares, uma vez que o mito relata um acontecimento que tem lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso das “origens”.
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ana barbara santo antonio
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