A TOALHA
Vivemos no ano de 2021,
quase vividos dois anos de Pandemia causada por um vírus que deixa marca na
história do mundo inteiro.
“Covid-19. Mais de 3,5
milhões de mortes e mais de 169 milhões de infetados no mundo.”
Os anos difíceis da 2ª
Guerra Mundial e o pós-guerra foram de muitos sacrifícios para os portugueses.
Em Trás os Montes trocava-se centeio por sal, e o trigo separado do joio mal
dava para matar a fome aos abastados senhores das terras.
Os campos agrícolas
clamavam por mão de obra de jornaleiros que corriam atrás de um prato de
comida. Eram bem-vindos os braços populares para colmatar vazios deixados pelas
vidas ceifadas na guerra. O pão das searas gritava pela mó dos moinhos
abandonados à mercê temperamental dos rios e ribeiros campestres.
Por esses tempos chegou à
aldeia um forasteiro pedindo trabalho. Foi indagando pelas tabernas,
deambulando pelas ruas, de taleigo ao ombro, mirrado o saco às costas, os
parcos haveres pouco lhe pesavam mas a fome era negra e essa sim, pesava-lhe na
alma atirando-lhe o corpo para a berma do passeio, sentado quase derreado para
a frente, as mãos a segurar a cabeça e o desespero de nada conseguir arranjar.
Foi assim que a Ti Maria o
viu da janela, observando-o e escutando-o com o seu sexto sentido.
Foi dizendo à filha e à
neta, que o homem estava cheio de fome, que o fossem chamar para comer alguma
cousa, pois uma malga de caldo não se nega a ninguém.
Dali a nada, o homem abria
o taleigo na sua frente tirando uma toalha de mesa, oferecendo-a para pagar
tudo o que tinha comido e bebido, agradecendo a oferta de trabalho no campo e o
acolhimento.
Um dia deixou a aldeia com
alguns contos de réis no bolso, e também a toalha de mesa como agradecimento.
São de granito as memórias
que enraízam de palavras, esteios de pedra em chão de alma, fios de algodão
como gavinhas de sarmentosas lembranças. E não são de ira as vinhas do passado
nem de tristeza ou desencanto, ou mágoas que avinagrem o vinho saudando a vida.
Guardamos a memória desse desconhecido no baú
dos afetos.
Tudo está escrito esperando
apenas a vindima da imaginação em fértil chão de saudade.
“Conto
“Em todas as almas, como em
todas as casas, além da fachada, há um interior escondido.”
Raul Brandão
“Nós somos casas muito
grandes, muito compridas. É como se morássemos apenas num quarto ou dois. Às
vezes, por medo ou cegueira, não abrimos as nossas portas.”
António Lobo Antunes
“A terra é a própria
generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão.
Bata-se a uma porta, rica
ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde:
- Entre quem é! Sem ninguém
perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a
intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a
magnificência da dádiva.”
Miguel Torga
A TOALHA
D. Chama apressou-se a
abrir a porta à sua neta que vinha carregada de embrulhos, sacos, pacotes e
caixas, e com as mãos totalmente ocupadas empurrava tudo à sua frente, deixando
cair aos pés da sua avó uma das caixas, que se abriu de imediato, derramando no
chão em madeira de castanho, brilhante e encerado, uma linda toalha branca de
algodão bordada a ponto de cruz e crivo.
- Ai minha filha que trazes
tanto peso nos braços! Porque não chamavas alguém para te ajudar. Valha-me Deus
tanta coisa... mas o que é isto?! Não posso crer... não é verdade… ai meu
Deus...
Aconteceu de imediato, como
que um relâmpago do passado, um raio de trovoada a cair de surpresa no soalho
antigo da velha hospedaria, o deslumbrar de algo que permanecera esquecido na
mágoa e no desgosto, tragédia antiga em segredo de família nunca revelado,
sempre evitando ocasiões de questionamento sobre as raízes e heranças agarradas
a uma mansidão melancólica.
A hospedaria era uma casa
típica transmontana, toda construída em pedra. Há séculos atrás a construção da
casa transmontana era formada por um só compartimento. Mais recentemente
alongou-se, dividindo-se por dois pisos, com entrada com “escaleiras”,
alpendrada, cuja construção é de xisto, com varanda recolhida, situada a meio
da fachada, o granito de inverno protege-a do frio, e de verão conserva-a
fresca e isola-a do calor. As diferentes classes sociais também influenciaram a
construção das casas. Os senhores com mais possibilidades económicas habitam em
casas grandes construídas com granito. É a casa serrana das classes mais
baixas, construída de xisto ou granito, com escadas salientes e telhados de
duas águas, sendo modestas e um pouco menores. No rés-do-chão encontram-se as
arrecadações e a casa dos animais que serve para aquecimento do piso superior.
O primeiro andar destinava-se à habitação familiar. Esta casa encontra-se
situada nas zonas montanhosas e vales.
D. Chama tentava amparar-se
de costas sobre a velha arca de madeira que se encontrava no hall de entrada da
hospedaria, e que na sua anterior vida permanecera na cozinha, a velha arca de
castanho, a um canto, onde se guardava a carne de porco cozida, o pão centeio
da mesa, e às vezes servia de mesa, para as refeições familiares.
Deixando-se desfalecer, com
a toalha branca de algodão nas mãos, agarrava-a firmemente junto ao peito e com
a cabeça meneando para os lados, com os seus olhos fechados, gemia o
desassossego que aquela obra prima de fios ricamente trabalhados em crivo, um
lustro entrelaçados de sonhos, preocupações, necessidades, tristezas, alegrias,
orações, um prazer desfiado em preces de luz e transparências, o tecido
transformado em arte filigranada, um labirinto de pontos e aberturas numa
espécie de grade aberta no pano desenhando arabescos, bordado utilizado em
quase todas as peças do enxoval, acumulado ao longo dos anos, na forma de
fronhas, lençóis, colchas, toalhas e roupas íntimas, bem como a toalha que
seria colocada no altar no dia do casamento, inclusive as almofadas onde os
noivos se ajoelhariam durante a solenidade religiosa do matrimónio, murmurava o
que parecia ser uma oração, gemendo com os olhos rasos de lágrimas, sibilava
palavras que lhe acutilavam os sentidos, fervorosamente despertos para as
recordações do seu passado, cheirava, aspirava, respirava o pano, embebia-se de
lembranças.”
(Excerto do início do conto
A TOALHA)anabernardo