sexta-feira, 23 de setembro de 2016

NÃO DISSEMOS AS PALAVRAS MAIS SIMPLES

TRILOGÍA POÉTICA

NÃO DISSEMOS AS PALAVRAS MAIS SIMPLES

Não dissemos as palavras mais simples
a caligrafia das águas sobre a pedra    uma pedra vacila
                                                                          verde

as árvores despertam dormem apertadas na concavidade
                                                                          do rumor
não dissemos ainda as pálpebras longínquas do horizonte
o trémulo deslumbramento da água jorrando lisa da terra
não dissemos a progressão das formigas em torno da árvore
                                   de claras malhas como leopardo

não dissemos as vagas sombras imóveis as folhas verdes
as altas e negras flores nas varandas suspensas
não dissemos sequer o nascimento da terra e do cavalo
as manhãs a meia noite o turbilhão
do ventre o arranque para a primeira explosão no mar e o muro
onde o tempo se condensa como um navio suspenso sobre
                                                              o mar vertical

António Ramos Rosa (17.10.1924 - 23.09.2013), "Não dissemos as palavras mais simples", em "Gravitações"

***
Mas sim... Já tudo dissemos...
Soltamos cavalos onde beijos se perdem em confronto entre um vale côncavo
Um espaço sagrado entre muros de pele e sentir
Do pescoço ao ombro
Dissemos todas as palavras sem nunca repetir
A furtiva saudade que se apodera de nós
E traz a chuva ao olhar na voz
Vales floridos de palavras semeadas de mãos em sentidos
Com a pressa e o pranto das águas sobre as pedras
E as pálpebras montanhas de cumes pungidos 
Vagas estranhas a cobrir mágoas
As ervas daninhas em tempestade
Uma escritura de medos
As palavras mais simples da eternidade
Nas folhas do outono segredos
Dessa cúmplice intimidade
onde o mar parou
musa

***
Não dissemos o que o corpo sentiu e a pressa calou
Foram tantas as palavras caladas que virei poeta
De ti
Para ti escrevi todos os poemas, todas as rimas
Em ti moram todos os meus pensamentos tardios
Sol de Outono
Foi num quarto fechado à luz e ao mundo
Que te tive. Sortudo, como todos os audazes
Nem vento, nem frio, nem tempo, nem distância
Nada te levará para longe de mim
Tu que vives em mim
Para lá da eternidade…
AF


Sem comentários: