terça-feira, 1 de março de 2016

A Ti INFÂNCIA (a melhor amiga da minha bisavó Maria da Encarnação Carrazedo)

Eu com o Carlitos, o neto da Ti Infância, na Ponta da Pedra do rio Tuela

A Ti INFÂNCIA (a melhor amiga da minha bisavó Maria da Encarnação Carrazedo)

Rebusco os bolsos do avental das memórias, outra vez aquela sensação de ter deixado uma luz acesa, de ter deixado uma porta aberta, ter deixado uma palavra por dizer, mas não encontro as doces pequenas maças amarelinhas dos olhos afáveis da Ti Infância, que conheci já uma velhinha, tez enrugada, cabelo todo branco, mãos rugosas e gretadas, talvez já perto dos setenta anos, tão franzina e delicada como desconcertada e desajeitada, periclitante e manca na sua pequenez de pouco mais do metro e meio de ternura e acredito que pouco mais do que cinquenta quilos de tamanho e agilidade mas de uma grandeza enorme na sua bondade e alegria benzida todas as manhãs pelo néctar das vinhas tão doce como a sidra das maças que jamais provarei de outra infância vivida.
Dançava nos seus braços as lágrimas de todos os dias carregando as tristezas alegres de dores mal paridas e forças ocultas de sonhos vividos na forca de Baco vociferando a intempérie de uma pobreza feliz e abastada com todas as riquezas da terra.
"O carrapito da D. Aurora era bonito mas foi-se embora..."
O seu abraço chegava sempre carregado de melodias e letras atabalhoadas e a dança escondida debaixo dos seus trajes negros encardidos do pó da terra ou enredado nas franjas do xaile, perfumado de odores da lareira e cheiros inebriantes da adega, cumpria o ritual da boa disposição e tal e qual a velha da história de Hänsel und Gretel (João e Maria) a Ti Infância alimenta as minhas recordações tirando dos bolsos do avental sonhos de fantasias com maças doces como o mel em rebuscado passado intacto na floresta de casas e uma rua onde todos se conheciam e abriam as portas em resplandecente harmonia acolhendo a minha rebeldia e inocência na penumbra fraterna de cuidado maternal como a mais rara magia ou feitiço de afectos guardados nos bolsos da velha dos mimos.
A rua onde nasci desde o entroncamento até ao cemitério, na transmontana aldeia para lá do Marão, onde as raízes florescem acima do chão a força telúrica do mistério dos vales profundos como a pré-história em melancólico silêncio dos mágicos contos da lareira projectando sombras na penumbra dos recantos do lar em dádiva oração, e todos se conheciam, e eram uma família com um final feliz.
A Ti Infância manca e desdentada com um único dente à frente, a segurar os sorrisos que emprestava aos meus sonhos de meninice e ingenuidade lançando aos ventos vénias de orgulho e temperamental sossego sem despojo de inquietações e tudo se resolvia na honorabilidade e crença numa fé capaz de mover montanhas pelo credo volátil fraco ignóbil do medo sem a repulsa da cegueira pela descrença no futuro.
Acredito bem que não havia futuro bem como não havia pecado, mas um presente bem mais ingrato do que o passado.
Chamava se Infância a velha senhora dos meus sorrisos e quero acreditar também que ela não vinha alimentar os meus olhos com a doçura das maças e a ternura de uma doce avó oferecendo colo às saudades da infância feliz que as vezes sorri rebuscada na lembrança do passado, mas trazia-me palavras que escondia nos meus sentidos como sementes deitadas à terra esperando a hora de germinar, cuidando da minha alegria de criança para que este dia chegado eu fosse capaz de sentir saudades suas.
Tantas vezes tenho vontade desse regaço meigo, desse colo e aconchego e desse olhar tão puro e verdadeiro e leal de humanidade e vida.
São elas que envolvem o meu sentir com cheiros e cores e trazem nas lágrimas furtivas de saudade o manso conforto das palavras em trégua com a difícil resistência a uma deportação de cansaço de viver.
Eu sei que além de um tempo de infinitude espiritual rege a claridade da travessia segura num raio luminoso esperando sereno no umbral da eternidade onde todas as mulheres da minha vida estendem os braços no seu regaço com um abraço do tamanho dos sentidos da poesia.
...
musa

Escrever a memória é somente dar a receita da eternidade de um povo
Sentir e partilhar das minhas memórias, é a minha humilde gratidão a uma parte desse povo que me fez mulher tal como sou sentindo nas palavras o rasgo fundo dos sentidos como em madrugadas rasgadas de chão fértil na lavoura dos sonhos e serei poetisa talvez Odete façam os versos a lavoura doce da essência feliz das gentes da minha terra onde tem raiz Torre de D. Chama e a pureza da minha meninice vingou com tanta fartura de poesia...

Grata a todos por este sentir... Carinho poético sempre

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